quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"Destino Traçado" (parte 1)

A noite vai longa, fria e chuvosa. Pela enésima vez, ele tenta em vão cobrir todo o seu corpo com o pequeno cobertor que dispõe. Dá outro retoque nas folhas de cartão que o rodeiam. É certo que não são uma parede de tijolo, e embora a água teime em passar por baixo delas, com a ameaça constante de o molhar, e as luzes dos candeeiros atravessem todas as frestas daquele castelo improvisado, a verdade é que desta forma sempre tem um abrigo e evita de se deitar nas pedras geladas e irregulares da calçada.

Faz hoje precisamente dezasseis anos que festejou o segundo aniversário da filha, em sua casa. Faz hoje precisamente dezasseis anos que a abandonou. A ela e à sua mulher, companheira de oito anos de vida, três dos quais casados. Tem quarenta e três anos, mas à muito que os deixou de contar. Vive e dorme na rua, hoje sua casa. A barba cresce-lhe, escura e suja, pescoço abaixo, tendo até a boca sido completamente tapada pelo espesso e desalinhado bigode. Parece quase que nem a tem, e em boa verdade, pouco uso faz dela, a não ser para balbuciar alguns sons quando mendiga uns trocos para o tabaco (seu único vicio), ou para quando encontra algum resto de comida num caixote do lixo nas traseiras de um qualquer restaurante. Os banhos são raros, mas as suas narinas, impregnadas pelo seu próprio cheiro, já não se queixam, e só se apercebe do odor que emana quando, próximo das ditas pessoas normais, as vê engelhar o nariz em sinal de repulsa.

Mas também ele já pertenceu à classes dos ‘normais’. Cara limpa, sedosa e com aroma a after-shave, banhos todas as manhãs antes de ir para o emprego, ir jantar ou almoçar ao restaurante, só porque não havia vontade de cozinhar, e deixar comida no prato a estragar. Agora que sente na pele a fome, reconforta-se deste desperdício que fazia, fazendo-se acreditar que apesar de tudo, estaria a alimentar alguém que estivesse na mesma situação em que ele agora está. Teria essa pessoa arranjado uma solução para o seu problema? Não o podia saber, apenas sabia que passados dezasseis anos, ainda não tinha uma solução para o dele.

Decidiu sair de casa quando (sair não, fugir!) não conseguiu oferecer à sua filha aquele presente que ela tanto gostava de ver aparecer no ecrã da televisão, e apenas lhe ofereceu um pequeno urso de peluche comprado, já em desespero de causa, numa qualquer loja de esquina. Decidiu fugir quando constatou que passados dois anos, a sua filha ainda não tinha um quarto totalmente mobilado, as roupas enchiam três ou quatro gavetas e havia pouco mais de uma dúzia de brinquedos espalhados pelo chão de casa. Fugiu por pensar que nunca seria capaz de dar àquelas pessoas que tanto amava, aquilo que mereciam. Verdade seja dita, o dinheiro nunca abundou entre eles, e o pouco que iam juntando era para um eventual imprevisto. Imprevisto esse que surgiu no dia em que a sua mulher engravidou. Apesar de todas as contrariedades financeiras e depois de muito debate sobre o assunto, decidiram ir em frente com a gravidez, pois no final tudo se resolveria a pouco e pouco. Afinal sempre tinha sido assim, e sendo boas pessoas, acreditavam que certamente alguém lá em cima estaria a olhar por eles. Mas após o nascimento do bebé as coisas não melhoraram, e apesar de não faltar comida na mesa, tinham que se sacrificar noutros aspectos.

Foram estes os motivos que o fizeram naquela noite, beijar a sua mulher nos lábios com um beijo tão apaixonado, tão delicado, tão profundo, como se fosse a ultima vez que a iria beijar, e mentir-lhe logo de seguida dizendo que só ia buscar uma segunda prenda à garagem. Mas ao chegar á garagem, entrou de imediato no carro e desabou em lágrimas. Chorou por tudo o que não tinha conseguido fazer, chorou pelo que iria fazer, chorou pela mentira contada minutos atrás, chorou pela sua filha e chorou porque aquele tinha mesmo sido o último beijo. E foi com os olhos ainda banhados de lágrimas, que desapareceu noite dentro, sem nunca olhar para trás.

(Continua...)

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