quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"Destino Traçado" (parte 2)

Os primeiros transeuntes a passarem por ele com as suas conversas matinais e as primeiras buzinadelas dos carros, fizeram-no acordar e despertar para a vida. Vida. Poderia ele definir a sua presença neste mundo como vida. Era difícil responder que sim. Sozinho, sem amigos e objectivos, carregando o fardo do abandono da sua família, que o esmaga cada vez mais a cada dia que passa. Por várias vezes pensou e esteve à beira de terminar com a sua própria existência, mas no momento crucial da decisão, nunca conseguiu ter coragem para tal. E pensava no cobarde que era por não o conseguir, quando teve coragem de tomar a decisão de abandonar as mulheres que tanto amava, e que, ainda hoje ama. Não havia um único dia em que não pensasse nelas. Estariam elas bem? Teria a sua mulher procurado o amor, carinho, segurança, afecto, nos braços protectores de outro homem que nunca a abandonaria? Como seria a sua filha, hoje com dezoito anos? Recordar-se-ia ela que foi deixada nos braços solitários da mãe, devido á sua cobardia? Ou teria para sempre caído no esquecimento de ambas?

Levantou-se. Escondeu o cobertor e as paredes da sua frágil e desmontável casa atrás daquele caixote do lixo que já ninguém usava, e contemplou o corrupio de pessoas e carros que já enchiam as ruas, com os seus olhos de um verde baço outrora brilhantes de alegria, todos passando por ele, sem sequer notando a sua presença, fazendo-o sentir-se como se fosse apenas uma sombra. Meteu a mão no bolso do casaco e tirou de lá metade de uma sandes que tinha encontrado dois dias antes. Tinha que racionar o que encontrava, ou lhe davam para comer, pois muitos já tinham sido os dias em que a única coisa que ingeria era a água do bebedouro do jardim público. A fome é uma constante na sua nova ‘vida’. Fome e lutas. Era inevitável que, de vez em quando, ele e outros como ele se envolvessem em lutas por um pedaço de comida, ou pelo melhor abrigo, ou por uma peça de roupa abandonada ou esquecida, ou até mesmo por defesa de um território que julgam ser seu. Apesar daquela cidade ser bastante grande e populosa, os ‘sem-abrigo’ rapidamente se moviam de um ponto para o outro e se encontravam.

Chegou àquela cidade depois de um longo percurso. Após fugir de casa, conduziu o carro até ficar com o depósito completamente seco. Quando o motor finalmente cedeu à sede, andou, abandonando também desta forma o seu companheiro de viagens que tinha desde os tempos da escola, andou até chegar a uma pequena localidade, a cerca de 5Kms de onde deixou o carro, onde passou o que restava da noite numa pequena e pestilenta pensão. No dia seguinte dirigiu-se até à estação e comprou o bilhete de autocarro para o local mais longínquo que o seu dinheiro lhe permitia. Fez a viagem de mais de seis horas em completo silêncio, não conseguindo limpar a culpa que lhe invadia a mente, acerca do que tinha feito no dia anterior. Chegando ao seu novo destino, aquela que viria a ser a sua nova ‘casa’, saiu do autocarro e caminhou em direcção incerta, indo para onde o vento empurrava as folhas, como se dançassem ao ritmo dos acordes de uma música inaudível. Caminhou até encontrar um jardim, um jardim enorme, todo rodeado por árvores frondosas e imponentes que pareciam fazer cócegas no céu. Flores de todas as cores e aromas preenchiam os espaços entre os caminhos de terra, ladeados por um ou outro banco de madeira, repouso para quem por ali vagueava. Um lago bem ao centro do jardim, era palco das peripécias de meia dúzia de patos, e das corridas dos muitos peixes que por ali circulavam, quais formigas a cuidar do seu formigueiro. Todas aquelas cores vivas e limpas contrastavam com o cinzento da sua alma. Toda a grandiosidade daquele local contrastava com o minúsculo do seu coração. Decidiu mesmo assim, e apesar dos sentimentos paradoxais que sentia em relação a ele e aquele belo jardim, que seria ali que finalmente estacionaria o seu corpo cansado e a sua mente exausta. A primeira noite foi difícil. Habituado ao conforto da sua cama e ao calor gerado pelos lençóis e pelo corpo da sua mulher, praticamente não dormiu e rapidamente constatou que teria de arranjar solução para se proteger da impiedosa noite.


(continua...)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"Destino Traçado" (parte 1)

A noite vai longa, fria e chuvosa. Pela enésima vez, ele tenta em vão cobrir todo o seu corpo com o pequeno cobertor que dispõe. Dá outro retoque nas folhas de cartão que o rodeiam. É certo que não são uma parede de tijolo, e embora a água teime em passar por baixo delas, com a ameaça constante de o molhar, e as luzes dos candeeiros atravessem todas as frestas daquele castelo improvisado, a verdade é que desta forma sempre tem um abrigo e evita de se deitar nas pedras geladas e irregulares da calçada.

Faz hoje precisamente dezasseis anos que festejou o segundo aniversário da filha, em sua casa. Faz hoje precisamente dezasseis anos que a abandonou. A ela e à sua mulher, companheira de oito anos de vida, três dos quais casados. Tem quarenta e três anos, mas à muito que os deixou de contar. Vive e dorme na rua, hoje sua casa. A barba cresce-lhe, escura e suja, pescoço abaixo, tendo até a boca sido completamente tapada pelo espesso e desalinhado bigode. Parece quase que nem a tem, e em boa verdade, pouco uso faz dela, a não ser para balbuciar alguns sons quando mendiga uns trocos para o tabaco (seu único vicio), ou para quando encontra algum resto de comida num caixote do lixo nas traseiras de um qualquer restaurante. Os banhos são raros, mas as suas narinas, impregnadas pelo seu próprio cheiro, já não se queixam, e só se apercebe do odor que emana quando, próximo das ditas pessoas normais, as vê engelhar o nariz em sinal de repulsa.

Mas também ele já pertenceu à classes dos ‘normais’. Cara limpa, sedosa e com aroma a after-shave, banhos todas as manhãs antes de ir para o emprego, ir jantar ou almoçar ao restaurante, só porque não havia vontade de cozinhar, e deixar comida no prato a estragar. Agora que sente na pele a fome, reconforta-se deste desperdício que fazia, fazendo-se acreditar que apesar de tudo, estaria a alimentar alguém que estivesse na mesma situação em que ele agora está. Teria essa pessoa arranjado uma solução para o seu problema? Não o podia saber, apenas sabia que passados dezasseis anos, ainda não tinha uma solução para o dele.

Decidiu sair de casa quando (sair não, fugir!) não conseguiu oferecer à sua filha aquele presente que ela tanto gostava de ver aparecer no ecrã da televisão, e apenas lhe ofereceu um pequeno urso de peluche comprado, já em desespero de causa, numa qualquer loja de esquina. Decidiu fugir quando constatou que passados dois anos, a sua filha ainda não tinha um quarto totalmente mobilado, as roupas enchiam três ou quatro gavetas e havia pouco mais de uma dúzia de brinquedos espalhados pelo chão de casa. Fugiu por pensar que nunca seria capaz de dar àquelas pessoas que tanto amava, aquilo que mereciam. Verdade seja dita, o dinheiro nunca abundou entre eles, e o pouco que iam juntando era para um eventual imprevisto. Imprevisto esse que surgiu no dia em que a sua mulher engravidou. Apesar de todas as contrariedades financeiras e depois de muito debate sobre o assunto, decidiram ir em frente com a gravidez, pois no final tudo se resolveria a pouco e pouco. Afinal sempre tinha sido assim, e sendo boas pessoas, acreditavam que certamente alguém lá em cima estaria a olhar por eles. Mas após o nascimento do bebé as coisas não melhoraram, e apesar de não faltar comida na mesa, tinham que se sacrificar noutros aspectos.

Foram estes os motivos que o fizeram naquela noite, beijar a sua mulher nos lábios com um beijo tão apaixonado, tão delicado, tão profundo, como se fosse a ultima vez que a iria beijar, e mentir-lhe logo de seguida dizendo que só ia buscar uma segunda prenda à garagem. Mas ao chegar á garagem, entrou de imediato no carro e desabou em lágrimas. Chorou por tudo o que não tinha conseguido fazer, chorou pelo que iria fazer, chorou pela mentira contada minutos atrás, chorou pela sua filha e chorou porque aquele tinha mesmo sido o último beijo. E foi com os olhos ainda banhados de lágrimas, que desapareceu noite dentro, sem nunca olhar para trás.

(Continua...)